Veja um grafo dos poemas de Marcelo Graglia
O poema começava como uma espécie de deslembrança, um olvido Na penúria daquele quarto que era sua clausura O papel, já velho, de tez amarelada Se regalava com as letras, que eram o que sobrava de sua indigência Naqueles tempos bicudos Em que se vivia das mãos de Deus A penúria não dava boa farinha E em nada atinava com seu jeito farsudo Pelas frestas da janela carcomida Se ouviam as baforadas de ira Que empesteavam as ruas Cheias de gente a viver na pindaíba Mas o matuto escrevia, agourento A vaticinar a sua profecia Se esquecendo da sua própria miséria De sua completa incapacidade de resolver a própria vida E da sua misantropia transbordavam palavras de ressentimento e de ódio E, assim, ele comia-se de raiva Enquanto chispava impropérios Em plena Sexta-Feira Santa
Para Esther Proença Poetisa, como se faz um poema? Um poema, meu filho, se faz com pequenas coisas Faça uma lista das coisas que gosta! Observe as pequenas coisas do seu dia-a-dia Poetisa, me conta, como se faz um poema? Veja, meu filho, veja aquele homem na rua Com sua vara acende os lampiões a gás Os candeeiros alumiando estas ruas de São Paulo, já molhadas pela garoa Poetisa, me diga, como se faz um poema? Ouça, meu filho, ouça O traquear dos vermelhinhos mandados por Getúlio neste ano de 32 Que ora avoam por sobre a cidade, sem que os valentes gaviões de penacho, dos bravos paulistas, qualquer coisa possam fazer Poetisa, poetisa, como se faz um poema? Cheire, meu filho, cheire Sinta o perfume das laranjeiras nos pomares frescos da Nove de Julho Sinta o cheiro do capim-cidreira naquela touceira aqui do sítio Poetisa, poetisa, vovozinha, como se faz um poema? Prove, meu filho, prove Se esbalde com esta bela macarronada que mamãe preparou Não tenha cerimônia, você é de casa! Poetisa, poetisa, vovozinha, professora, como se faz um poema? Me abrace, meu filho, me abrace Sinta a minha ternura, toque a minha humanidade Abrace a vida, meu filho, abrace a vida! A poesia está nas pequenas coisas, a poesia está na vida.
Foi tanto o amor que nos deu nesta vida Que nem cabe em nós, de tanto, de tanto Sua presença que ora volta, ora silencia A socorrer nossos jardins Judiados pelas secas e pelos maltratos Que trazemos dentro de nós Já vemos que o tempo, Que nos afastou, nos aproxima Reconforta as dores Acumuladas nesta vida Por saber que ao final desta lida Estará a nos esperar em vigília Pela estrada de terra batida Por sobre a ponte de madeiras partidas Nos aromas do capim e das flores À vista dos pés carregados de laranjas Seremos, outra vez, crianças Segurando sua mão na hora da partida Para minha avó Cecília, dos seus primeiros netos
Fia manto Fia luz Fia dia Cada boca aberta Tem dente, tem fome Tem guela Fia manto Fia luz Fia dor Se de dois um morre Cada um faz dois Cada três faz nove Fia manto Fia luz Fia vida Se busca esperança No outono não vinha Se tenta de novo Se acaba na esquina Se engana seu povo Te descem a ripa Fia manto Fia luz Fia toda Cabeça que rola Caçapa de bola Ponto cruz Facho de luz Fia a roca Fia, fia, fia
De toda bruma e de toda névoa Que dos olhos oculta o que se cerca Oculta o que se espera Tal cortina úmida Qual trama d'água Virá um calafrio, um estupor Um medo primitivo Daqueles de criança que entra na casa escura E ouve o silêncio que sussurra De toda bruma e de toda névoa Que se movimenta ligeira Sem carecer de vento, autônoma A cobrir o caminho e seus entornos Os viajantes e seus estorvos Seus empeços, seus encalhes, seus embaraços Virá um arrepio, um comedimento E uma insignificância, tênue, qual manto sagrado A cobrir seu destino E alguma delas, na hora certa, o fará ser nada Sem história, sem passado, sem parentes Sem apreços, sem sonhos, sem tropeços Será só bruma, só névoa Qual cortina úmida Qual trama d'água
O vento sopra tão forte Carvalhos, sussurros, histórias As pedras e o chão que pisas Estão gelados agora E a noite chegou para ficar Antes que o sol se fosse Há tempos os corvos não gritam Notícias do Norte distante Os muros de gelo refletem A densa floresta além Será que monta guarda Seu irmão de sangue? O inverno já está chegando Não há nada mais a fazer Sombras e escuridão Nos olhos de um andarilho Traição e infâmia São tintas do trono de ferro A guerra é só uma lembrança Não lutaria de novo Tempos sem justiça Réquiem para todo seu povo Escolha um só caminho Há nuvens pesadas no céu
De cada canto que havia Saía um sussurro, uma agonia De cada igreja que mofava Uma reza, uma homilia De cada trote, de cada rima Da solidão que se escondia Se fazia a bruma que banhava, de silêncio Cada pedra que vestia aquelas ruas E não pudera, pobre infeliz Vagar impune à fantasia De se cobrir de flores De se matar de amores De caminhar em saltos De povoar em sonhos Os jardins pequenos Que nasciam em cada muro.
Em memória do poeta paulistano Alberto Gattoni Alberto, decididamente, não era um sujeito fácil. Se contrariado, mandava logo um Manuel Bandeira e, de peito estufado, trinava: - Nada como um modernista para quem não gosta de levar desaforo para casa! Alberto era valentão, não há dúvida. Se chamado para a briga… cruzes... não tinha meio termo, era violento: Sacava ligeiro um Drummond e mandava ver…só pena que avoava... Alberto não tinha compaixão, ah, Alberto! Quando desafiado numa querela, afiava sua Lispector e não havia Clarisse que pudesse contê-lo. E nem Cecília e nem Meireles. Mas, diga-se a verdade, Alberto era um romântico. Colecionava Bilacs e Vinicius, aos montes. Regava todos os dias. E sempre que sua paixão por ele passava, Alberto Cora, Coralina, Corava.